Sobre os Lados Não-Intuitivos do Caos e da Ordem

about 2 years ago (Edited)

Lorenz Attractor - Artista: Axarok

Quando Erick primeiro trouxe a ideia da ShapeShift para mim, no início de 2014, foi antes de eu pessoalmente ter qualquer interesse em qualquer ativo digital além do Bitcoin. Até então, nada além do Bitcoin parecia particularmente interessante; toda outra moeda parecia apenas um clone de copiar/colar do Bitcoin com alguns dos seus parâmetros alterados (e isso era a vasta maioria da experimentação das altcoins naquela época). De todo modo, era difícil saber porque a versão inicial da ShapeShift seria útil ao amplo ecossistema do Bitcoin.

Quando eu comecei minha jornada trabalhando com Erick para construir o protótipo inicial da ShapeShift, eu estava majoritariamente excitado apenas com a ideia de trabalhar o tempo todo desenvolvendo coisas interessantes no espaço Bitcoin. O conceito de "cripto" ainda não tinha sequer começado a entrar completamente na indústria de forma significante.

Na época, altcoins pareciam como um agente do caos no espaço, espalhando confusão e ideias que dificultavam que o usuário médio entendesse a proposição de valor central acerca do Bitcoin e porque ele era importante. No entanto, é importante olhar para o que aconteceu desde o lançamento da ShapeShift em 2014 e a imensa quantidade de valor que surgiu desse caos ao longo dos anos.

Geralmente temos uma conotação natural em nossa linguagem que nos faz pensar automaticamente em "caos" como uma coisa ruim e "ordem" como uma coisa boa, mas acho que isso nos fará perder muitas nuances no espectro entre esses dois conceitos. Muitas das inovações mais importantes na história humana vieram do caos de uma forma ou de outra, e muitos dos piores males que humanos perpetraram vieram de uma superabundância de ordem. Nossa linguagem nos engana a pensar que o caos é apenas de um tipo — e o mesmo para ordem. Cada um pode ser em verdade bom ou ruim dependendo do contexto.

Outra maneira de pensar sobre isso é que o caos tende a andar de mãos dadas com qualquer mudança, enquanto a ordem anda de mãos dadas com as coisas ficando como já estão. O caos que vem com a mudança pode levar a algo melhor, enquanto a ordem pode fazer as coisas funcionarem com mais eficiência — raramente muda alguma coisa, muito menos muda fundamentalmente para melhor.

Experimentamos isso muitas vezes nos primeiros dias da ShapeShift, lidando com grandes quantidades de caos em nossas primeiras operações, mas muito desse caos gerou mais inovação e oportunidades mesmo dentro de nosso próprio produto. Cada novo daemon de moedas com que lidamos trouxe seu próprio caos em comparação com o bitcoind (e de fato até o próprio bitcoind mais tarde lançaria seu próprio caos sobre nós quando 2017 nos trouxe as grandes batalhas de migração de moedas), mas importantemente, aproveitar esse caos permitiu que a ShapeShift liderasse no mundo cripto em termos de nossa habilidade de adicionar novos ativos interessantes e permitir o acesso a essa explosão cambriana emergente de ativos no espaço cripto.

Da mesma forma, quando nossos recursos de desenvolvimento foram particularmente limitados em nossos primeiros anos, adotamos muito do caos em termos de ter um sistema de balanceamento totalmente manual, executado principalmente por mim naqueles primeiros dias. A "roda de hamster", como a chamávamos, porque você nunca poderia parar de correr para que a máquina não parasse, era uma fera infernal que nunca cedia e ela levou meus próprios relacionamentos pessoais ao limite por causa da constante demanda do meu tempo (especialmente com minha esposa, que claramente me ama e me apóia ou ela não estaria mais comigo), mas isso nos levou a entender os problemas de provisão de liquidez de uma maneira que poucos outros projetos de cripto entendem.

Isso gerou o início do nosso software de auto-equilíbrio, que, obviamente, trouxe seu próprio nível de caos ao sistema. No entanto, as coisas melhoraram incrementalmente ao longo do tempo, e essas experiências permitiram que a ShapeShift crescesse e se fortalecesse em seus primeiros anos, e esses desenvolvimentos aconteceram inquestionavelmente mais rápido do que se tentássemos descobrir todos esses problemas antes de colocar a ShapeShift online em produção para negociações reais com usuários, como uma abordagem mais ordenada poderia ter ditado.

No caso da indústria maior de cripto, muitos dos novos conceitos e experimentos mais importantes que entraram em nosso espaço têm sido inseparáveis elementos caóticos. As primeiras altcoins que ShapeShift tornou facilmente acessíveis ao mundo, como a Namecoin, Peercoin, Litecoin e, é claro, Dogecoin, todas surgiram do caos da inovação descentralizada.

Para as pessoas focadas em apenas trazer o Bitcoin para o mundo na época, isso parecia um caos desnecessário, quase uma heresia, mas deu origem a todos os tipos de experimentação em torno de diferentes algoritmos de mineração e sistemas cripto-econômicos, e até mesmo a gênese de novas ideias de mecanismos de consenso, como a Prova de Participação. Todas essas foram inovações valiosas e importantes que emergiram do caos e, sem dúvida, não teriam existido ou teriam demorado muito mais para se firmar sem a comunidade descentralizada abraçando e apoiando o que, na época, parecia a muitos como o caos encarnado.

Essa tendência de caos e experimentação realmente se acelerou com o lançamento da Ethereum e a subsequente explosão da tokenização, contratos inteligentes e ICOs que deram origem aos tempos de boom da corrida de criptomoedas de 2017. Novamente, para muitos bitcoiners, todo o experimento Ethereum parecia distrair a todos da missão principal de trazer dinheiro seguro ao mundo — e talvez isso tenha trazido um pouco de distração, mas apesar de todo o caos ao redor da explosão cambriana de tokens e ICOs, esses foram experimentos importantes sem os quais coisas como a Finança Descentralizada (DeFi) nunca teriam sido possíveis.

Novamente, o caos trouxe mudanças, essas mudanças geraram mais caos, que gerou mais mudanças — um ciclo turbulento, mas virtuoso da inovação. Tokens se tornaram fáceis de criar via ERC-20s por quaisquer razões sob o sol, e projetos usaram isso para levantar fundos via ICOs. Apesar de toda a preocupação e reação dos reguladores e da mídia em 2017, as ICOs provaram ser um mecanismo de financiamento viável, que, em um número de casos, levou a alguns dos melhores retornos que os investidores viram em séculos de atividade econômica. Sim, houve muitas coisas ruins que aconteceram com tokens e ICOs durante esse período, e é claro que os scams correram desenfreados, mas prefiro essa inovação e mudança caótica a qualquer momento, ao invés de apenas deixar o status quo seguir seu curso.

Durante essa mesma época, os NFTs entraram em cena na forma de CryptoKitties, os colecionáveis digitais peludos que entupiam os tubos Ethereum e causavam todo tipo de problema a ShapeShift. Parecia nada além de caos, mas nossa adaptabilidade a esse novo elemento tornou nossos sistemas ShapeShift mais fortes. Isso nos forçou a inovar nossa arquitetura Ethereum de novas maneiras, tornando-nos mais resilientes e escaláveis a longo prazo. Vemos agora que as NFTs estão no caminho de se tornar uma inovação verdadeiramente valiosa e importante em vários setores, principalmente arte e jogos hoje, mas amanhã, no espírito de descentralização, isso provavelmente se espalhará em todas as direções imagináveis. Essa é a beleza do caos descentralizado: ele pode permitir construir tudo de uma vez em todas as direções, muitas das quais falharão, mas algumas das quais alterarão dramaticamente o curso do mundo e da história humana.

Passar por algumas dessas inovações caóticas, mas brilhantes, que evoluíram pela primeira vez nos incêndios da corrida de criptomoedas de 2017, naturalmente nos leva à Organização Autônoma Descentralizada (DAO). A DAO original, em muitos aspectos, antecedeu muitos desses outros fenômenos. Foi a gênese dos primeiros tokens ERC-20 úteis (tokens DAO) e usou um mecanismo de financiamento que eles chamaram de evento de criação de DAO que reunia todos os fundos para os proprietários dos tokens DAO alocarem via governança. Tudo sobre DAO era caótico quando entrou em cena — o conceito, a própria criação, onde mais de 150 milhões de dólares em ETH foram lançados neste contrato inteligente inicial, sem clareza específica sobre como tudo isso funcionaria — tudo culminando com a DAO explodindo de forma espetacularmente caótica, com mais de 10 por cento de toda ETH em circulação presa nele, levando ao hard fork ETH/ETC.

Novamente, na época, era difícil ver além do caos que permeava todas essas coisas, tanto que DAOs levaram mais tempo do que quase qualquer outra inovação cripto para se tornarem aceitáveis novamente, mas durante no ano passado, quando o caos da experimentação surgiu novamente, vemos tudo o que o DAO realmente acertou com seu experimento aparentemente louco. Sua implementação inicial pode ter sido prematura, mas sua ideia de uma Organização Autônoma Descentralizada reunindo ativos cripto e trabalhando em nome dos proprietários de tokens que a governam gerou o que acredito que será a próxima grande inovação em como os humanos podem se coordenar coletivamente para alcançar e incentivar a operação de metas compartilhadas. Talvez até venha a ser a maior inovação em não apenas séculos, mas milênios de humanos aprendendo a trabalhar uns com os outros. A proliferação dessas economias totalmente novas baseadas em DAO aparecendo em toda a Internet e a própria ShapeShift fechando o círculo para realmente dar à luz e se tornar uma DAO fala muito.

DAOs ainda são muito novas no cenário. Elas só se tornaram realmente populares no ano passado em conexão com a explosão de interesse do verão DeFi. Para uma DAO realmente ter sucesso, a mudança precisa ser adotada em quase todas as etapas. Uma DAO não é um novo tipo de empresa ou apenas uma nova maneira de governar as coisas; contém esses aspectos, mas é muito mais do que a soma dessas partes. É um tipo inteiramente novo de atividade econômica e sistema que ainda não temos a linguagem completa para descrever, e muito menos temos a linguagem para descrever para onde irá. Pela natureza de sua base descentralizada, DAOs poderão evoluir mais continuamente do que uma empresa, governo ou qualquer outra forma centralizada de se organizar as pessoas jamais poderia. Quanto mais pudermos abraçar e aproveitar isso, mais o bem brotará continuamente das coisas que a princípio pensamos que não são nada mais do que apenas agentes do caos. A partir disso, a soma positiva de riqueza e bem criada para o mundo será mais do que podemos imaginar atualmente, tudo alimentado por atores globais descentralizados engajados em nada além de atividades inteiramente voluntárias.

Nenhuma dessas inovações, incluindo DeFi, tokens, NFTs, DAOs e o atual caminho pioneiro da ShapeShift, teria sido possível sem tantos atores descentralizados no meio abraçando o bem que o caos pode trazer em vez de apenas temê-lo. É preciso coragem para entrar e dominar o caos, para se sentir confortável com a incerteza e permitir a mudança e a experimentação sem ter um caminho ordenado de como fazer muitas dessas coisas, mas é precisamente, eu diria, de onde as inovações mais importantes na história humana sempre se originam. Quando somos forçados a nos adaptar na fronteira, é quando nossas energias criativas realmente brilham.

Lembro-me de uma passagem de um dos meus livros favoritos que estou relendo no momento:

"A raça humana não está dividida em irracional e racional, como pensam alguns idealistas. Todos os humanos são irracionais, mas existem dois tipos diferentes de irracionalidade – aqueles que amam as velhas ideias e odeiam e temem as novas, e aqueles que desprezam as velhas ideias e abraçam alegremente as novas. Homo neophobus e homo neophilus. Neophobus é o estoque humano original, o estoque que quase não mudou nos primeiros quatro milhões de anos da história humana. Neo-philius é a mutação criativa que apareceu em intervalos regulares durante os últimos milhões de anos, dá à corrida pequenos empurrões para a frente, do tipo que você dá uma roda para fazê-la girar cada vez mais rápido. Neophilius comete muitos erros, mas ele ou ela se move. Eles vivem a vida da maneira que deve ser vivida, noventa e nove por cento de erro e um por cento de mutações viáveis" (RAW, Illuminatus! p. 202).

À medida que avançamos para esta nova versão da ShapeShift como uma DAO alimentada por uma comunidade descentralizada e global, quero que todos nos lembremos deste pouco de sabedoria. Irão haver inúmeros erros à medida que encontrarmos nosso caminho neste novo mundo. Haverá uma ladainha de experimentos fracassados e haverá uma grande quantidade de caos para todos os envolvidos. No entanto, isso não precisa ser uma coisa ruim! Será bom para todos nós aprendermos a abraçar o caos como um importante agente de mudança para melhor. Podemos aproveitar o caos para nossos propósitos e dele pode surgir algo bonito e incrivelmente poderoso para toda a humanidade que não encontraria seu caminho para a existência de outra forma. Todos nós podemos tentar ser um pouco mais neophilius e um pouco menos neophobus, abraçar a mudança, a experimentação e a incerteza que vem com isso e que dará frutos para as próximas gerações. Isso acontecerá não apenas apesar dos inúmeros e inevitáveis erros que cometemos, mas fundamentalmente por causa deles.

Se você for tirar alguma coisa desse artigo, eu quero que seja isso: não descarte o caos de imediato como ruim ou abrace a ordem automaticamente como boa. Entenda o bem que a mudança caótica pode trazer e o mal que a ordem pode nos prender, incentivando e cimentando a falta de mudança. Nem o caos nem a ordem são "bons" ou "ruins"; eles são simplesmente conceitos formados por humanos que podem ser utilizados como ferramentas para nossos fins. Entre no caos, abrace e aproveite-o mesmo nàs vezes que ele lhe parecer esmagador, e faça da ordem uma ferramenta que você empunha, não uma autoridade que você obedece cegamente.